terça-feira, 13 de abril de 2010

EFEITO DA GUERRA PARA A ARQUEOLOGIA

As guerras foram responsáveis pela destruição de muito patrimônio cultural da humanidade muito dos quais nem chegamos a conhecer porque a insanidade das guerras levou bibliotecas a serem queimadas, cidades inteiras foram colocadas no chão.

A arqueologia tem muitos adversários como: o tempo, as catástrofes naturais e o clima que deterioraram a maioria das produções culturais da humanidade. Mas as guerras ameaçam destruir até mesmo aquilo que já foi recuperado e se encontra conservado. Em uma época de armas poderosas um míssel em um museu, pode por fim em varias riquezas arqueológicas, e o que demorou séculos para ser ajuntado pode sumir em segundo.

O texto abaixo de Marcelo Rede fala da ameaça da guerra para o desenvolvimento da arqueologia:



19/03/2003
O patrimônio histórico iraquiano: uma vítima esquecida
MARCELO REDE
especial para a Folha Online

Nos debates sobre uma eventual guerra no Iraque, tem-se falado abundantemente das possíveis consequências econômicas globais de um ataque norte-americano, assim como das inevitáveis alterações na configuração de forças no Oriente Médio.

Tais preocupações econômicas e geopolíticas são, evidentemente, justificáveis. Uma outra esfera, no entanto, não tem recebido a devida atenção: o impacto de tais eventos sobre o patrimônio histórico iraquiano. Não se trata de pouca coisa. Se alguma vez a expressão "berço da civilização" teve sentido, foi justamente para designar o conjunto de sociedades que compuseram a antiga Mesopotâmia.

A região que corresponde hoje ao moderno Iraque viu, há alguns milênios, surgirem os primeiros esforços humanos para a domesticação dos animais e a realização da agricultura. Nas planícies banhadas pelos rios Eufrates e Tigre surgiram as primeiras cidades da história. E, ao que tudo indica, a primeira vez que o homem colocou uma língua por escrito se deu em Uruk, no sul mesopotâmico.

Assim, alguns fenômenos matriciais do que se convencionou chamar de "civilização" tiveram seus primeiros balbucios no antigo território iraquiano. Embora milenares, esses processos deixaram suas marcas na paisagem na forma de centenas de cidades, palácios, templos e quarteirões residenciais que hoje formam os "tells", as colinas que escondem abaixo de si os resíduos arqueológicos de uma experiência histórica singular. Some-se a isso os milhões de tabletes de argila em que os antigos sumérios, assírios e babilônios registraram em sua escrita cuneiforme desde simples contratos de compra e venda de terras e escravos, atos de casamento, herança, adoção, até os mais antigos textos literários da humanidade. Trata-se do maior conjunto de escritos antes da invenção da imprensa por Gutemberg e um número incalculável deles encontra-se ainda no subsolo iraquiano.

Os atentados contra esse patrimônio fazem parte da história da região. A situação de perigo não é nova. Grande parte dos objetos e textos conhecidos dos especialistas e do público provém de escavações clandestinas. No início do século 20, o sítio de Senkereh, a antiga cidade-reino de Larsa, foi de tal modo saqueado pelos beduínos que sua superfície parecia um campo de batalha. No início dos anos 30, uma intervenção da Aviação iraquiana foi necessária para abrir o terreno para arqueólogos profissionais. Os tabletes clandestinos foram parar no mercado de antiguidades antes de serem comprados por grandes museus europeus e norte-americanos.






Mesmo as expedições oficiais dos primeiros tempos da arqueologia pareceram-se mais com saques impiedosos. Monumentos inteiros foram removidos e enviados para algumas capitais ocidentais. A grandiosa porta de Ishtar da Babilônia encontra-se hoje em Berlin; os murais em pedra com relevos dos palácios assírios, em Londres; os touros alados de Khorsabad podem ser vistos no Louvre, em Paris, ao lado da famosa estela do código de Hamurabi.

Durante a época em que o Iraque fazia parte do Império Otomano, as autorizações de escavações eram dadas mediante o envio de uma parte do butim para os museus de Istambul e Ancara. Em 1932, com o país já independente, uma lei de proteção das antiguidades limitou a sangria: a partir de então, o resultado das escavações deveria ficar em território iraquiano.

A tumultuada história política recente da região, com seus conflitos étnicos e religiosos, guerras e golpes de Estado, também contribuiu para o agravamento do problema. A guerra Irã-Iraque (1980-1988) e a Guerra do Golfo (1990-1991) resultaram em destruição e paralisaram os cuidados de manutenção e a exploração científica por duas décadas.

No intervalo entre os dois conflitos, muitas missões estrangeiras retornaram ao país, mas os trabalhos não duraram. Nos últimos anos, arqueólogos e historiadores voltaram a campo. O Museu de Bagdá, que fora parcialmente esvaziado durante os intensos bombardeios da capital, estava sendo reestruturado, a duras penas devido à falta de recursos e pessoal qualificado. Os alemães voltaram a escavar Assur, uma das capitais do Império Assírio, cujo sítio está parcialmente ameaçado de inundação devido à construção da barragem de Makhul. Os franceses enviaram uma expedição a dois sítios na região do Sindjar, ao norte. Um grande colóquio internacional foi organizado no país para celebrar a invenção da escrita. O novo quadro de tensão ameaça interromper uma vez mais todos os esforços.

Quando se fala em destruição do patrimônio histórico, as atenções concentram-se normalmente sobre os estragos imediatos da guerra. Evidentemente, eles não são negligenciáveis. A poucos metros do sítio de Babilônia ergue-se um dos palácios de Saddam Hussein. Tais construções são suspeitas de acobertar laboratórios de pesquisa bélica, depósitos de armas e munição ou refúgios militares. Um ataque a tais alvos certamente causaria danos aos monumentos vizinhos.

No último conflito, arqueólogos forneceram aos militares um mapeamento dos sítios históricos a serem evitados, mas até mesmo a precisão de um bombardeio cirúrgico tem seus limites, como ficou demonstrado. O fato de os Estados Unidos não serem signatários da convenção da ONU de 1954 sobre a proteção do patrimônio histórico em situação de conflito armado faz crescer ainda mais os receios de uma ação catastrófica.

A situação toda é ainda agravada pelo fato de que boa parte do patrimônio cultural iraquiano é subterrâneo, formado por cerca de 10 mil sítios repertoriados. Numa região em que faltavam a pedra, a madeira e os metais, a antiguidade viu surgir uma verdadeira civilização da argila. Na antiga Mesopotâmia, nada existiu de comparável às sólidas pirâmides egípcias ou aos templos em mármore gregos ou romanos. O grosso dos resíduos é formado pelo acúmulo continuado de construções em tijolos de argila. Atualmente, esses verdadeiros depósitos de informações formam montículos na paisagem árida. No calor da batalha, nem sempre é fácil distinguir entre um inofensivo sítio arqueológico e um abrigo camuflado de bateria antiaérea.

No entanto, são os efeitos mais prolongados dessa situação de beligerância que, embora menos espetaculares, causam os danos mais consideráveis. Em primeiro lugar, o empobrecimento geral do país, em particular após o bloqueio comercial, diminuiu os já escassos recursos aplicados na preservação e administração do patrimônio cultural. Um único vigia é responsável pelo gigantesco sítio de Ur (a cidade de Abraão, segundo a Bíblia)!

O isolamento do Iraque tem efeitos igualmente perversos. Várias gerações de competentes arqueólogos iraquianos foram formadas no exterior, na Europa e também nos Estados Unidos, mas esse fluxo foi quase extinto depois da Guerra do Golfo. Por outro lado, as expedições dos países ocidentais, antes responsáveis pelos principais avanços no estudo da história da região, rarearam e correm risco de extinção. Sem sítios a escavar, as missões debandam para países vizinhos, em particular a Síria. E sem novos materiais de estudo, os interesses dos pesquisadores e das instituições também se orientam para outros horizontes.

Não é portanto apenas a guerra em si que causa preocupação. Mesmo que ela não venha, a situação já é suficientemente grave. Por exemplo, ao estabelecer as zonas de exclusão aérea ao norte do paralelo 36 e ao sul do paralelo 32, a ONU limitou drasticamente o poder de atuação das autoridades de Bagdá. O norte é uma zona predominantemente ocupada pelos curdos. O sul é controlado por grupos xiítas que se opõem ao regime de Saddam. Mas a ONU não se preocupou em estabelecer uma política consistente de proteção do patrimônio histórico nessas regiões. Os resultados são lamentáveis: nos últimos meses, o mercado de antiguidades viu uma verdadeira inundação de tabletes provenientes de Umma, antiga cidade suméria perto do golfo Pérsico e cujo sítio jamais fora escavado cientificamente. Certamente, as incursões clandestinas voltaram a todo vapor e, reservadamente, muitos já falam de conivência das autoridades, dada a dimensão do espólio.





A importância do patrimônio histórico iraquiano excede as fronteiras do país e de seu regime. Os objetos e textos que o compõem são fundamentais no esclarecimento de questões cruciais para o entendimento do passado de toda a humanidade. Um único exemplo bastará: hoje, sabe-se que o entendimento do texto bíblico só será plenamente possível com o avanço das pesquisas sobre a história mesopotâmica. Se a relevância desse argumento for reconhecida, teremos um motivo a mais para clamar pela paz no Oriente Médio.

FONTE:

Marcelo Rede é professor de história antiga da UFF (Universidade Federal Fluminense) e doutorando em assiriologia na Universidade de Paris-Sorbonne. Integra, como membro estrangeiro, o Laboratório de História e Arqueologia do Oriente Cuneiforme do CNRS de Nanterre

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